Quem me estuprou

6/08/2013


Hoje fui estuprada. Subiram em cima de mim, invadiram meu corpo e eu não pude fazer nada. Você não vai querer saber dos detalhes. Eu não quero lembrar dos detalhes. Ele parecia estar gostando e foi até o fim. Não precisou apontar uma arma para a minha cabeça. Eu já estava apavorada. Não precisou me esfolar ou esmurrar. A violência me atingiu por dentro.
A calcinha, em frangalhos no chão, só não ficou mais arrasada do que eu. Depois que ele terminou e foi embora, fiquei alguns minutos com a cara no chão, tentando me lembrar do rosto do agressor. Eu não sei o seu nome, não sei o que faz da vida. Mas eu sei quem me estuprou.
Quem me estuprou foi a pessoa que disse que quando uma mulher diz “não”, na verdade, está querendo dizer “sim”. Não porque esse sujeito, só por dizer isso, seja um estuprador em potencial. Não. Mas porque é esse tipo de pessoa que valida e reforça a ação do cara que abusou do meu corpo.
Então, quem me estuprou também foi o cara que assoviou para mim na rua. Aquele, que mesmo não me conhecendo, achava que tinha o direito de invadir o meu espaço. Quem me estuprou foi quem achou que, se eu estava sozinha na rua, na balada ou em qualquer outro lugar do planeta, é porque eu estava à disposição.
Quem me estuprou foram aqueles que passaram a acreditar que toda mulher, no fundo no fundo, alimenta a fantasia de ser estuprada. Foram aqueles que aprenderam com os filmes pornô que o sexo dá mais tesão quando é degradante pra mulher. Quando ela está claramente sofrendo e sendo humilhada. Quando é feito à força.
Quem me estuprou foi o cara que disse que alguns estupradores merecem um abraço. Foi o comediante que fez graça com mulheres sendo assediadas no transporte público. Foi todo mundo que riu dessa piada. Foi todo mundo que defendeu o direito de fazer piadas sobre esse momento de puro horror.
Quem me estuprou foram as propagandas que disseram que é ok uma mulher ser agarrada e ter a roupa arrancada sem o consentimento dela. Quem me estuprou foram as propagandas que repetidas vezes insinuaram que mulher é mercadoria. Que pode ser consumida e abusada. Que existe somente para satisfazer o apetite sexual do público-alvo.
Quem me estuprou foi o padre que disse que, se isso aconteceu, foi porque eu consenti. Foi também o padre que disse que um estuprador até pode ser perdoado, mas uma mulher que aborta não. Quem me estuprou foi a igreja, que durante séculos se empenhou a me reduzir, a me submeter, a me calar.
Quem me estuprou foram aquelas pessoas que, mesmo depois do ocorrido, insistem que a culpada sou eu. Que eu pedi para isso acontecer. Que eu estava querendo. Que minha roupa era curta demais. Que eu bebi demais. Que eu sou uma vadia.
Ainda sou capaz de sentir o cheiro nauseante do meu agressor. Está por toda parte. E então eu percebo que, mesmo se esse cara não existisse, mesmo se ele nunca tivesse cruzado o meu caminho, eu não estaria a salvo de ter sido destroçada e de ter tido a vagina arrebentada. Porque não foi só aquele cara que me estuprou. Foi uma cultura inteira.
Esse texto é fictício. Eu não fui estuprada hoje. Mas certamente outras mulheres foram.
 — Aline Valek

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5/06/2013

"Acho que todo mundo precisa ter um lado egoísta por questão de sobrevivência. Não dá pra viver a vida olhando para o lado, uma hora você precisa olhar para dentro. Todo mundo sabe o que quer. Mesmo que você ache que não, mesmo que seu pensamento seja traiçoeiro, mesmo que o mundo esteja caindo: você sabe o que quer." 
— Clarissa Corrêa
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Você se despediu. O primeiro evento climático foi uma chuva de “Com o tempo passa”. Não culpo ninguém. Por que culparia? É apenas o conselho mais óbvio que se dá para uma pessoa quando ela está mergulhada na água gelada de um poço: Isso, fica aí, o tempo não vai te deixar morrer de frio, fome nem doença nenhuma. Esse tempo que me prometeram não está dando empurrão nenhum, não enche meu copo d’água, nem mesmo acende meu cigarro. Esse é o mesmo tempo que faz questão de berrar, arrastar seus ponteiros caminhando na circunferência do relógio, como um velho obeso e letárgico passando na frente do meu quarto enquanto minha cabeça lateja de dor. O mesmo tempo que me engana, me faz pensar que dormi dia primeiro e acordei dia segundo, por levantar da cama exatamente do mesmo jeito em que deitei; me pregando a peça de passar no meu rosto espuma de barbear fora da validade, lavar meu cabelo com shampoo podre e chorar com meus cabelos mortos em minhas mãos. Só meu corpo deteriorando-se me faz descobrir da pior maneira que acordei dia trinta e um. Me fazendo me sentir mais inútil, mais fracassado, e com mais ódio de quem acreditou que eu teria a capacidade de deixar o tempo fazer seu serviço. Está tudo igual.
— Paulo Gonçalves

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"A companhia, tanto de homens - através das conversações livres e familiares - quanto das mulheres - através do amor - é aleatória e depende sempre de outro alguém. Ambas tem inconvenientes (…). A companhia dos livros é a mais segura. Não se compara às outras, mas apresenta a vantagem de estar sempre ao nosso alcance. O convívio com o livro sempre me ajudou, em todas as circunstâncias; consola-me, suaviza uma ociosidade que poderia ser aborrecida e livra-me das pessoas inoportunas; amortece, enfim, os latejos da dor quando não é demasiado aguda e é mais forte do que qualquer paliativo. Para afastar uma ideia desagradável, nada como recorrer aos livros. Apossam- se de mim e fazem-me esquecê-la. Jamais se ressentem por só os procurarmos na falta de prazeres mais reais, mais vivos e naturais, que outorga a companhia de homens e das mulheres." 
— Júlio Silveira e Martha Ribas - “A Paixão Pelos Livros”.
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"Mas acho que a vida é isso mesmo, um dia é bom e o outro é uma porcaria. Não dá pra ser feliz o tempo todo." 
— Clarissa Corrêa
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